quarta-feira, 11 de maio de 2011
Censura da música "Cálice" (Chico Buarque/Gilberto Gil)
Este é mais um exemplo de letra contra a censura, predominante entre nossos compositores à época (1973) em que a canção foi criada. Na verdade, "Cálice" destinava-se a um grande evento promovido pela PolyGram, que reuniria em duplas os maiores nomes de seu elenco, e no qual deveria ser cantada por Gilberto Gil e Chico Buarque. No livro Todas as letras, Gil narra em detalhes a história da canção, a começar pelo encontro inicial dos dois no apartamento em que Chico morava, na Lagoa Rodrigo de Freitas, ocasião em que lhe mostrou os versos que fizera na véspera, uma sexta-feira da Paixão. Tratava-se do refrão ("Pai, afasta de mim este cálice / de vinho tinto de sangue"), uma óbvia alusão à agonia de Jesus no Calvário, cuja ambigüidade (cálice / cale-se) foi imediatamente percebida por Chico. Gil levara-lhe ainda a primeira estrofe ("Como beber dessa bebida amarga / tragar a dor, engolir a labuta / mesmo calada a boca, resta o peito / silêncio na cidade não se escuta / de que vale ser filho da santa / melhor seria ser filho da outra..."), lembrando a "bebida amarga", uma bebida italiana chamada Fernet, que o dono da casa muito apreciava e sempre lhe oferecia, enquanto "o silêncio na cidade não se escuta" significava que "no barulho da cidade não é possível escutar o silêncio", ou "não adianta querer o silêncio porque não há silêncio", ou seja, metaforicamente: "não há censura, a censura é uma quimera", pois "mesmo calada a boca, resta o peito, resta a cuca". Deste e mais outro encontro, dias depois, saíram a melodia e as demais estrofes, quatro no total, sendo a primeira e a terceira ("De muito gorda a porca já não anda...") de Gil, a segunda ("Como é difícil acordar calado...") e a quarta ("Talvez o mundo não seja pequeno...") de Chico. No dia do show, quando os dois começaram a cantar "Cálice" desligaram o microfone. "Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la", conclui Gil. Irritadíssimo com o microfone desligado, Chico tentava outro mais próximo, que era cortado em seguida, e assim, numa cena tragicômica, foram todos sendo "calados", impedindo-o de cantar "Cálice" até o fim. Liberada cinco anos depois, a canção foi incluída no elepê anual de Chico, com ele declarando que aquele não era o tipo de música que compunha na época (estava trabalhando no repertório de "Ópera do Malandro"), mas teria que ser registrado, pois sua tardia liberação (juntamente com "Apesar de Você" e "Tanto Mar") não pagava o prejuízo da proibição. Na gravação, as estrofes de Gilberto Gil, que estava trocando a PolyGram pela WEA, são interpretadas por Milton Nascimento, fazendo o coro o MPB 4, em dramático arranjo de Magro.
Fonte: Livro 85 anos de Música Brasileira Vol. 2, 1ª edição, 1997, editora 34
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